DEMORÔ ABALOU BANGU
Marcos Fabrício Lopes da Silva*
O tratamento desumano que a atual configuração do capitalismo dispensa aos trabalhadores nunca foi novidade no Brasil. Infelizmente, o país teve 400 anos de história imersos em uma economia escravocrata. Fomos condicionados, em nossa cultura e educação, a tratar como “serviçais” e “funcionais” todos aqueles que exercem o trabalho. Somam-se a esse quadro nossos valores éticos de origem católica, que associam o trabalho com a punição dos pecados e a inferioridade pessoal. O poeta Paulo Kauim, em Demorô (2008), ‘abalou Bangu’, ao acender a esperança e apagar a escuridão, mesmo lidando com a paradoxal condição do sujeito brasileiro, homem-bomba e homem-bamba num só ser: “caravalha/a ira/a usura branca/não sabiam/que dos podres porões/das escravavelas/sairia/o/samba/o vento/no lenço/no pescoço/no arco/na lapa”.
Kauim, com despojamento neologístico, lança mão do criativo “escravavelas” para mostrar explicitamente a verdadeira intenção da fúria colonialista promovida por Portugal no sentido de explorar ao máximo as riquezas materiais e imateriais do Brasil, tratado como mero apêndice da Coroa Lusitana. Eça de Queiroz teve a pachorra de dispensar dois comentários infelizes sobre o Brasil. Em Uma campanha alegre, o escritor disse: “Porque, enfim, o que é o brasileiro? É simplesmente a expansão do português”. Falou, pela cloaca, que: “O brasileiro é o português – dilatado pelo calor”. Desconstruindo o lusotropicalismo, Kauim destaca outra realidade: inteligência, criatividade e sabedoria eram transportados nos tumbeiros, mesmo que os traficantes só tivessem olhos para o potencial mercadológico cravado na exploração trabalhista da mão-de-obra negra. O poeta, assim, mostra que a elite brasileira se fundamenta em um moralismo europeu colonial, defensor da ordem pela via da igualdade e do respeito ao próximo, sendo ao mesmo tempo defensor da escravidão e da divisão da sociedade entre nobres e servos. Um discurso moral perverso, legitimador dos interesses privados das classes dominantes sobre a conduta e a cultura das classes trabalhadoras. Quem presta atenção nos “africânticos” de Paulo Kauim não cai no conto da democracia racial brasileira propagada em Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre.
O autor de Demorô nos oferece um achado conceitual para contemplar a nossa musicalidade genuinamente talentosa: “samba:/ pára-raio/do morro”. A beleza se coloca no lugar na tristeza para promover a alegria, graças ao empenho dionisíaco de nossa brava gente brasileira que sacou, desde priscas eras, os efeitos tenebrosos do apolíneo mundo excludente. Kauim sugere como trilha sonora dos afetos outros ritmos nascidos na quebrada, onde a reta se curva para contemplar a riqueza da diversidade: “amor/ não/ é/ buraco/ é/ cratera/ de/ abraços/ fogo/ e/ gelo/ rubi/ e/ mano/ brown/ na/ mesma/ estação/ de/ rádio”. O escritor ainda destaca o amor como a celebração do encontro de peles que se admiram, de almas que se congratulam. Tratar o maior dos sentimentos como buraco é bestializar o sublime que só o afeto açucarado pode nos oferecer. Com a graça de tirar proveito do quente e do frio, sem a gente precisar apelar para o morno das conveniências. A convivência é uma corda estendida entre dois pólos: a distância e a aproximação. Como mágicos do amor e malabaristas da dor, a gente se mistura, promovendo vínculos de qualidade. Que o nosso rádio não fique surdo diante da música polifônica e dialógica das ruas. No beco escuro, explode a violência – como ressaltam Os Paralamas do Sucesso, na voz de Herbert Vianna. Porém, Paulo Kauim nos revela que no beco escuro também explode poesia.
Em um apurado trabalho de educação sentimental, o poeta traz as várias facetas do amor para o tablado literário das exposições sem imposições: “entre tantas patologias/contaminado sou/ pelo amor/ amor é doença/ e cura/ mordida/ e antídoto/ amor fura olhos/ beija pupilas/ amor é só/ é troca/ sem/ troco/ epiderme/ do/ ódio/ ir ao trabalho com amor/ é suicídio/ beijar na boca sem amor/ é abismo/ sexo sem amor/ é só sexo/ só sexo é mais só/ amor contamina/ sem cegar/ amor entra no sangue/ sem coagular/ amor desentope”. Esta nobre concepção afetiva lê a contrapelo a configuração do amor no capitalismo contemporâneo. Em uma cultura na qual prevalece a orientação do marketing e em que o sucesso material é o objetivo e o valor mais importante, não há por que se espantar com a forte tendência, na qual as relações humanas de amor estão obedecendo aos mesmos modelos que governam o mercado de bens e de trabalho. Ironicamente, Kaium desmonta esse materialismo chinfrim, colocando no lugar dele uma poética do valor enquanto apreço: “amor não aceita cheque/amor é à vista/amor é caro”. Nada de felizes para sempre ou até que a morte nos separe. Sabedoria de marinheiro, sugere o poeta, para melhor viver as razões do coração: “amor é onda/maré baixa/maré alta”.
A poética de Kauim é capaz de unir o amor na falta, desejando o que não temos, e o amor na presença, alegrando-nos com o que já se encontra à nossa disposição. Quem achava, no embalo da Ilha de Caras, que chique é ficar em um hotel cinco estrelas, de pernas para o ar, caiu do cavalo. A voz poética de Kauim transforma ninhos de concreto em pousadas de amor: “hotel/ duas estrelas/ meu/ amor/ e eu”. Coladinhos com vontade, a separação é a dor que arde: “semana santa/sem você/um inferno”. Quando alguém nos afeta de alegria aumenta nossa potência de agir e nosso tesão pela vida. Nem tudo alegra, pois o mundo também entristece. Amiúde aliás. E aí, só nos resta odiá-lo. Ódio pelo que nos faz passar a um estado menos potente de nós mesmos. Considerando que apreciamos a flor em sua integridade, isso significa dizer que os espinhos também precisam ser contemplados em nosso jeito delicado e visceral de amar.
* Professor das Faculdades Fortium e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.
Na foto : o poeta PAULO KAUIM !!! Autor do belo livro DEMORÔ !!! AXÉ, PAULO!!! ( Jorge Salomão - Poeta, Performer, Militante do Sublime )
Parabéns pelo livro, fuderoso abs!
( H.D. Mabuse - Caranguejo com Cérebro do Manguebeat )
" Seu livro é maravilhoso " - Jorge Mautner
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Prezado Poeta,
Estou em falta com você. Não lhe escrevi antes, porque ando um tanto atarefado (muitas demandas do trabalho e estou julgando (faço parte da comissão) o concurso de poemas do SESC.
Mas, nos intervalos, tenho lido seus poemas, que tem me revelado o bom poeta que você é.
Não é ainda um comentário crítico, com substância teórica, mas pude notar de saída alguns aspectos muito interessantes de sua poesia:
Você consegue conciliar, em muitos casos, concretismo com lirismo, que, a meu ver, é essência da poesia.
Seus poemas não se limitam (como ocorre com muitos autores da linha concretista ou marginal) ao experimentalismo visual, ou sonoro, com exploração de trocadilhos ou assonâncias gratuitas. Há neles sempre uma significação poética instigante, inteligente.
O veio da ironia e da crítica social é outra tônica de sua poética. Exemplo disso é o poema:
“o brasil
é errado desse jeito
porque começou
com a faculdade
de direito.”
A sutileza de escrever o “brasil” dá a nota da sagacidade poética.
Síntese e lirismo está presente em:
“Amor
parente do tempo
eterno.”
Poderia ficar aqui citando e comentando tantos outros poemas que me impressionaram. Mas fico lhe devendo para um futuro próximo algo mais elaborado.
Por ora receba os meus cumprimentos pelo seu belo e sólido livro de poemas demorô.
Sucesso e novas criações é o que lhe desejo.
Wilson Pereira
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28 de julho às 10:54
17/01/2009 - CORREIO BRAZILIENSE - DF
Faróis acesos
Com trajetórias e estilos bem diferentes, os poetas Eudoro Augusto e Paulo Kauim incorporam vida e paisagem brasilienses às suas mais recentes obras
Fernando Marques
Especial para o Correio
A tendência antirretórica e o pendor à brevidade são traços pelos quais se pode ligar a poesia do veterano Eudoro Augusto à do estreante em livro Paulo Kauim - autores, no mais, muito diferentes entre si. Radicados em Brasília e atuantes na cidade, os dois poetas publicaram livros recentemente. O trabalho de Eudoro chama-se Um estrago no paraíso e reúne dois conjuntos de poemas. O de Kauim leva o título de demorô (em minúsculas mesmo), devido ao fato de esta ser a sua primeira coletânea.
O lisboeta-carioca Eudoro Augusto, na casa dos 60 anos, originariamente ligado à geração que fez a poesia alternativa ou marginal na década de 1970, publica seu nono volume de poemas; o pernambucano Paulo Kauim, cerca de 20 anos mais moço, embora esteja longe de ser um autor inédito, divulga o primeiro livro agora. As bossas marginais de Chacal, Charles ou Chico Alvim parecem ter influído sobre os textos, em geral brevíssimos, de Kauim, nos quais surgem ainda, evidentes, os laços com a poesia concreta - praticamente ausentes da poesia reflexiva de Eudoro.
Silêncio sépia
Há sete anos, tive oportunidade de resenhar Olhos de bandido, oitavo livro de Eudoro Augusto. Volto à poesia do mestre comentando seu nono livro, Um estrago no paraíso, que contém dois grupos de poemas: "Carta selvagem", textos escritos entre 2002 e 2006, e "Claraboia", que corresponde a trabalhos mais recentes.
Os diversos conjuntos de textos compõem projeto uno, conforme o autor adverte na abertura: trata-se de "trilogia iniciada com Olhos de bandido, de 2001". Os traços gerais da poesia de Eudoro, que vêm sendo depurados há 35 anos, de fato permanecem nítidos em Um estrago no paraíso.
Ao falar sobre o livro anterior, notei que seus textos frequentemente partem das palavras cotidianas para entortá-las, reescrevendo-as pela metáfora ou pelo atrito entre o corriqueiro e o inefável. No livro agora lançado, o poeta mantém-se fiel a si mesmo, talvez aprofundando a sua maneira de exprimir a vida urbana contemporânea, prensada entre afetos, desejos e contas a pagar.
Vale perceber ainda, em Um estrago no paraíso, certo processo recorrente que está entre os traços singulares dessa poesia: a capacidade de propor cenas (algumas delas relativas a encontros entre homem e mulher), tirando-as da vida e reinventando-as. Ao narrar esses episódios, misturados à fantasia, o escritor descreve a índole dos personagens e o contorno dos ambientes de maneira simultaneamente sugestiva e precisa. Um exemplo é "Arizona", quando o bar vira saloon de cinema, ou "Depois da festa", onde se lê que "o amor pode não ser profundo/ como o decote que o inspira".
Esse processo de transfiguração surge também quando o personagem lírico centra-se em si mesmo, como é o caso em "Marítimo", com os objetos descobertos pela luz da manhã, ou em "As horas", onde "Brasília adormece em silêncio sépia/ e o poeta se move na direção do horizonte", composições ótimas. Alguns poucos textos, ancorados no trocadilho ou no registro instantâneo, parecem menos vitais para o resultado global do livro; mesmo esses poemas guardam, contudo, a marca bem-humorada do autor.
Deve-se destacar ainda o Eudoro Augusto epigramático, em versos que resumem o confronto entre emoção caudalosa e paisagem árida: "Brindamos mas não bebemos./ O vinho do sentimento/ não cabe no copo da realidade". Um estrago no paraíso fala fundamentalmente dessa "paixão maior do que a cidade", sem a qual viver não faz sentido. Faz?
Linhas do buriti
Em texto com o qual se apresenta, Paulo Kauim conta que a poesia lhe chegou primeiramente pelos ouvidos - "via voz de meu pai repentista ainda na infância em Pernambuco". Outros alumbramentos, diz, foram a descoberta da poesia concreta e, depois, a leitura dos versos descarnados de João Cabral de Melo Neto.
Coerente com a preocupação visual que o interesse pelo concretismo assinala, o poeta editou livro que também procura conquistar o leitor pelos olhos, assessorado pelo bom projeto gráfico de Masanori Ohashy. O volume está dividido em oito partes, dedicadas a temas ou a técnicas poéticas distintas, e traz alguns de seus melhores textos na seção onde predominam poemas concretos.
Duas observações podem ser feitas acerca de demorô. A primeira delas refere-se não apenas ao livro, mas à tendência na qual ele se insere, tendência que remonta às vanguardas do início do século passado, projetadas até os dias atuais. Trata-se da tentativa de captar estes tempos segundo a multidão de informações que nos assaltam os sentidos, vindas dos diversos veículos, do outdoor à internet, numerosos e estridentes. Falo da estética do "tudo ao mesmo tempo agora".
A dúvida que se deve levantar, inspirada na leitura dos poemas breves e ágeis de demorô (sobretudo os que buscam representar o estado de espírito resultante do permanente assédio aos sentidos), relaciona-se à confusão que se acaba fazendo entre a realidade, no que possa ter de essencial, e a pseudorrealidade, meio alucinatória, composta por estímulos dispersos na cidade contemporânea.
Quando, por exemplo, o poeta associa Duchamp às favelas, Mangueira a Mondrian, não estará reunindo coisas que só em sonho aparecerão ligadas? A consistência do real decide-se nas salas sombrias dos poderosos (veja-se a guerra no Oriente Médio), mais do que em nossos bem-intencionados delírios. Reitero: não se trata aqui apenas da poesia de Kauim, mas de tendência nacional e internacional, proveniente de Mallarmé e idosa de mais de um século.
A segunda observação refere-se especificamente à arte de Kauim. O pendor à extrema síntese, presente em quase todo o volume, torna sua poesia demasiado dependente dos achados, da eletricidade bruscamente liberada (ou não) no atrito entre as palavras.
Quando os achados se realizam, o poeta é capaz, sim, de oferecer belos momentos aos leitores, de sentido ora lírico, ora crítico. Instantes de poesia genuína como aquele em que se define com base na paisagem, um pouco à maneira de Cabral e nisso aproximando-se de Eudoro (que também tematiza a linda e triste Brasília): "que / mi / nha / poe / sia / te / nha / a / eco / no / mia / das / li / nha / s / do / bu / ri / ti". Ou ainda, referindo-se à felicidade virtual: "ADSL / solidão / mais / veloz".
Fechando estas notas, será interessante ressaltar que os dois autores incorporaram vida e paisagem brasilienses a seus poemas. Cada um a seu modo, ambos operam o registro, natural e necessário, de aspectos da existência nesta cidade, hoje.
Fernando Marques é jornalista, doutor em literatura brasileira pela UnB. Publicou Retratos de mulher (poesia, Varanda), Zé e o livro-disco Últimos (peças teatrais, Perspectiva)
De Um estrago no paraíso, de Eudoro Augusto
Correios & Telégrafos
Chegou alguma coisa pra mim?
Alguma carta? Um convite? Uma encomenda?
Nada. E as contas?
As contas chegaram.
Carta selvagem
Sem traços aparentes de violência sua natureza selvagem vai exterminando aos poucos as espécies que ainda habitam a costa ocidental do meu coração.
Frescor
Cada vez que você sai do banho está recriando a primavera.
De demorô, de Paulo Kauim
mini rap agalopado para chico science
este
poema
foi
escrito
pra
ser
falado
não
pra
página
ou
parede
e
sim
pra
tímpano
e
martelo
o
poema
falado
é
pistola
no
ouvido
grito
saído
do
papiro
biu
meu
pai
em
pernambucana prosódia
entre
calos
entre
canas
repete
:
a melhor
religião
é
o
outro
dia
nu
bla
do
dia
dor
im
sem
rio
bal
do
http://www.linearclipping.com.br/PDFs/610213.pdf
.
PAÍS IDEOGRÂMICO DE KAUIM
Francisco K
Após alguns folhetos poéticos, Paulo Kauim arremessa-nos o livro cujo título se refere a seu longo tempo de gestação e impasse: Demorô!
Se esses folhetos estavam bem próximos do que se chamava poesia marginal, o teor do impasse é de plano revelado na orelha do livro: “Ao final da adolescência, o impacto que tive com a poesia concreta me deixou sem falar. Fiquei sem saída.”
A saída vai passar por certo tipo de incorporação do radicalmente outro da poesia concreta, mas sem que se cheguem a apagar os traços da descontração marginal. Há, ainda, outras referências que parecem decisivas nesse processo, também expostas na orelha: “Fui reler João Cabral para sair da encruzilhada-xadrez de estrelas”... e possibilitar a retomada de sua primeira vivência poética, pela voz do pai pernambucano e repentista. Retomada da infância toda-ouvidos... para chegar, enfim, à fala afiada da escrita.
O pai, seu Biu (um Severino mais de vida que de morte), foi também líder camponês, tendo que fugir da repressão da ditadura, em um percurso que vai levá-lo de Timbaúba (pequena cidade da zona da mata pernambucana) a Taguatinga (cidade-satélite de Brasília). Sem perder, nesse périplo e depois, algo que importa, pois se permite dizer (no poema que Kauim lhe dedica): “a melhor religião é o outro”.
E talvez, também, a melhor poética. De qualquer modo, uma que Kauim intensa e insistentemente exercita.
Nada de solipsismo. Nem mesmo de profundidade introspectiva. Em Paulo Kauim, a tendência de voltar-se ao outro, à alteridade, já se manifesta no diálogo com essas (e mais algumas) poéticas bem diversas.
Num diálogo, decerto, renovador. A concisão acentuada e a auto-ironia afirmativa de “hotel / duas / estrelas // meu / amor / e eu” (eis todo o poema) mostram como ele costuma se afastar do desleixo tão característico dos marginais.
Por outro lado, a mais emblemática forma do abstracionismo geométrico pode ganhar (no poema para Cartola) não só curvas, como um desconcertante movimento:
quadrado
do
quadril
da
mulata
De modo muito evidente, a sua é uma poesia que referencia, homenageia e dialoga com poetas e outros artistas, que podem ser também amigos (como os poetas brasilienses Donne Pitalurgh e Gabriel Beckman). Em lugar de tentar enumerá-los todos, examinemos um momento em que o processo se extrema e se concentra. O poema “meu pai” começa por “meu pai / é / meu poe / / rimbaudelairezrapoundonnepitalurgregório / / meu mário de sá carneiro / meu mário faustino / meu mário de andrade // gabrielbecruzesousândradécio”, para concluir o paideuma, estrofes e muitos pais depois, com “meu pai / é / seu severino / seu biu”.
Nota-se, aqui, uma sobreposição de escalas muito distintas. O reconhecimento de alguns marcos poéticos decisivos mistura-se com uma admiração (em princípio, generosa) por poetas bem próximos, para chegar, em outros poemas, simplesmente às homenagens a pessoas amigas (que podem também ser artistas, mas tratadas antes de tudo como amigos). Sua poesia está, assim, próxima da circunstância e da vivência pessoal, do gesto afetivo e lúdico, tanto quanto busca eleger um repertório (em boa parte) exigente e rigoroso.
A poética do outro chega a mais um interessante extremo em “sem nonato o mundo é palha”. O poema mais longo do livro é criação coletiva, improviso de três amigos taguatinguenses dedicado a um outro, resultando em algo inusitado – painel colagístico provinciano e espontâneo, um renga haikai desarvorado, que não deixa de emocionar.
Importantíssimo, também, é o abrir-se da sua escrita à alteridade cultural. Paulo Kauim não tece seu diálogo apenas com figuras diversas da cultura erudita brasileira e ocidental, ou com poetas e artistas da cena brasiliense. Há uma forte presença de elementos (e técnicas) japoneses e do Nordeste de nosso país, junto com uma extensa e empolgante mobilização de vetores da cultura afrobrasileira (ou afroamericana).
Nesse processo de incorporação e montagem, adquire grande importância o método ideogrâmico de composição, pelo qual elementos diversos são justapostos, relacionando-se de modo não-subordinativo e não-linear – frequentemente com ênfase em sua disposição no espaço.
Assim, em um dos exemplos marcantes, temos (nas duas primeiras estrofes):
samba duchamp
dança semioiticica
nu descendo escadas
pela favela
mangueira
mondrian
beira mar
ô beira mar
nossa mirada
alto do morro
malevich
As palavras ou versos sucedem-se como planos de um filme, que se metamorfoseiam, contrapõem-se. O som também motiva a montagem: por exemplo, “sAMba” repercute em “duchAMp”, depois em “dANça”, e na estrofe seguinte em “mANgueira” e “mondriAN” (esses dois últimos termos em correlação e rima com o primeiro par). O /ã/, como o bater de um surdo, junta-se com outros fonemas para fazer a teia sonora, que tudo envolve e suspende.
A aproximação inesperada de “samba” e “duchamp” explica-se melhor depois - não só pela alusão ao artista plástico Hélio Oiticica (um inventor-artista radical em diálogo com a cultura dos morros cariocas), mas sobretudo por uma sobreposição da tela de Marcel Duchamp (Nu descendo uma escada) nessa mesma ambiência. Aqui se faz inevitável pensar na cena cotidiana de uma moça (ou seria um moço?) descendo a escadaria da favela (como aquela que inspirou o comentário de João Gilberto aos Novos Baianos e rendeu depois um bom samba: “Lá vem o Brasil descendo a ladeira”) – sendo que, agora, despid@.
Mesmo que se possam esclarecer e explicitar relações entre os termos díspares, sua junção imprevista nos atinge, de imediato, com certo impacto. O ideograma acumula maior energia justamente na justaposição de palavras mais distantes ou incongruentes, podendo emitir então, a partir das semelhanças (de som e de sentido) que inadvertidamente vão surgindo, aqueles fulgurantes disparos elétricos (i.e., poéticos).
Mas o que vai então se vislumbrando – em alguns, em especial, e no conjunto dos poemas de Kauim – é um projeto de Brasil, que só pode ser mesmo configurado pelo ideograma. O Brasil que se quer, ou Kauim quer, junta uma diversidade de elementos, alguns impertinentes ao universo cultural brasileiro já fixado; mas, sobretudo, os junta estabelecendo relações não-hierárquicas, que se dão ao jogo de suscitar correlações novas, reverberantes, inesperadas.
Os instantes de paraização do Brasil (ou de algo ao mesmo tempo mais pessoal e mais universal, como em “12 coisas que me tiram do chão”) definem-se como construção propositiva, projetual – do poema-instante-presente ao futuro incerto – e se estabelecem por essas relações predominantemente não-subordinativas, paratáticas.
A importância estratégica desse projeto não descarta poemas que propõem um embate direto com elementos contestados da realidade. Poemas que expõem, por exemplo, a violência da sociedade brasileira contra índios e contra sem-terra – ou a mediocrização midiática da cultura: todo um Brasil que não se quer.
Mas Kauim é mais poeta na trama utópica de outro Brasil (e por que não mundo?), que se abre para o outro e se engendra no entretecer diferenças; tal como parece ser de fato a vocação de nosso país, mas de um outro modo, mais inventivo, improvável e justo.
Falta falar, entretanto, de um voltar-se para o outro igualmente decisivo para apreendermos o que acontece em Demorô. Embora já anunciado, quando tratamos de poesia concreta e ideograma, é necessário enfocar melhor o virar-se da palavra para a imagem – o diálogo ou entrecruzamento de verbal e visual.
Vale dizer que, se o gesto pessoal e lúdico é tão marcado em tantos de seus poemas, Kauim resolveu, por outro lado, projetá-los em espaço público (assinalando sua vocação a um tempo transgressora e coletivista): um arriscado grafite – como no título da última seção de Demorô – ou, mais precisamente, uma aventura gráfica.
Eis um livro visualmente projetado com ousadia e êxito inegáveis (por Masanori Ohashy, em diálogo com o poeta). Começando pelo sábio uso das cores, das páginas e letras, em branco, preto e vermelho e mais raro cinza.
Predomina, ao longo de todo o livro, a composição clara e elegante, com o tipo sem serifa e vastos espaços em branco (às vezes negros), em boa parte exigida pelos poemas concisos. O verso curto ou o quase-verso dinamizam a página e a leitura, chegando, diversas vezes, a resultados mais arrebatadores que os dos poemas mais ostensivamente visuais.
Isso acontece, em certos poemas, com a sutil intromissão de elementos icônicos. Naquele dedicado a Gregório de Matos, a letra “o”, predominantemente o artigo isolado na linha (quase-verso), parece estar mostrando “o / mundo”, “o / Brasil”, a “oca” e (a boca de) “o / boca” (do inferno). Temos aqui não só a representação de uma esfera ou de uma circunferência (em três dos casos), mas também um virtual diagrama com quatro (ao menos) círculos concêntricos.
Em “recapitulo”, o desdobrar das palavras nos quase-versos mostra como, de um (curto) capítulo a outro, acaba por se capturar (em sua indefinição mesma) Capitu. Já no poema para Araci (de Almeida) e Noel Rosa (e também para Caetano Veloso), olho e voz interna flutuam e refluem entre as palavras.
Um contra-exemplo seria o “existir”: ele fica ainda mais bonito em sua diagramação bem espaçada, geométrica, mas esta não é nem intrínseca nem indispensável à configuração verbal do poema.
Em uma rápida avaliação de conjunto, podemos dizer que Kauim assume, no entrelaçamento do concreto com o marginal, a postura leminskyana de assinar “caprichos e relaxos” – construções com alto grau de apuro junto com achados mais espontâneos ou casuais. Estes podem ter, afinal, sua graça e interesse.
Ao contrário, no entanto, do percurso do incrível Paulo Leminsky, temos um trajeto de Paulo Kauim que o leva ao mais difícil, ao mais desafiante – e a conquista que daí resulta só pode causar júbilo.
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JORNAL CORREIO BRAZILIENSE
Hai kai de Kauim
Severino Francisco
Desde o início da construção de Brasília, sempre foram os artistas que lançaram o olhar mais atento, agudo e amoroso para a cidade modernista. Eles nunca se preocuparam se ela tinha ou não esquinas e outras trivialidades, pois perceberam claramente que estavam diante de uma proposta inovadora.. Brasília inspirou diretamente um dos principais manifestos do trio paulista de poetas formado por Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari, intitulado Plano Piloto da Poesia Concreta.
Quando leu os manifestos o pernambucano/taguatinguense Paulo Kauim sentiu-se em um beco sem saída, em uma encruzilhada, no desafio de produzir uma poesia que incorporasse as técnicas de vanguarda e não renegasse a experiência de nordestino impregnado de cultura popular. Como conciliar Pound e pedra, Mallarmé e maracatu, Cummings e Cartola?
Kauim passou 30 anos quebrando a cabeça, mas conseguiu abrir uma fresta para sair da encruzilhada e escavar uma voz própria na poesia, com algo de concretismo e cordel, rap e repente, ideograma e grafite, Niemeyer e João Cabral de Melo Neto, Brasília e Recife, utopia e memória, hai-kai chinês e samba, teatro Nô e alegoria de carnaval: “O Brasil é Jô e Gil/Nô e new/É Assis e Noel/É caqui com cajá/judô com dendê/É Araci com araçá”.
O resultado destas experimentações está registrado em Demorô (Ed. Thesaurus), uma espécie de livro-objeto, que se apropria livremente das inovações concretistas. É uma poesia que evoca a do curitibano Paulo Leminski, no verso rápido e no humor, mas que é muito marcada pela arquitetura, os marcos modernistas, o gosto experimental e a espacialidade de Brasília
É uma poesia concreta recriada por um olhar tropicalista, animado pelo gosto anárquico de devoração antropofágica e mistura de múltiplas linguagens no mesmo caldeirão. O grafite, a falha e o erro borrando o design asséptico da paisagem: “O Brasil é errado desse jeito/Porque começou/com a faculdade de direito”.
O eixo geográfico por onde se move a poesia de Kauim é quase sempre o formado por Pernambuco/Brasília/Brasil/África.Repent
De maneira análoga ao que ocorreu com o Plano Piloto de Lúcio Costa, o Plano Piloto da Poesia Concreta também era muito racional e foi implodido pelas contradições da cultura brasileira, não se cumprindo como havia sido planejado. Um lance de dados jamais abolirá o acaso, já havia escrito Mallarmé, em um verso que se tornou um dos lemas preferidos dos poetas concretos. E, de fato, o acaso jogou os seus dados.
No diálogo, muitas vezes tenso, com os planos pilotos, estão emergindo poetas interessantes. Apesar de cair algumas vezes em maneirismos de vanguarda, Kauim está ensaiando uma resposta singular ao desafio colocado pela Poesia Concreta, jogando o lance de dados da poesia com muita liberdade, sem excluir nada de sua história ou da história da cultura brasileira: “A felicidade brasileira/Toda/Cabe num pandeiro”.
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CORREIO BRAZILIENSE – CADERNO C
CRÔNICA
MATILHA DE
MALDITOS
JOSÉ CARLOS VIEIRA
DA EQUIPE DO CORREIO
Já bebeu vodca e mordeu maçã verde? Escreveu poesia com Letra 7? Serigrafou o coração? Paulo Severino sempre foi Kauim. Uma mistura indígena-pernambucana-africana-brasiliense-nipônica na mesma bacia. É tijolo por tijolo, como os irmãos Campos. Rock por rock, como Jimi Hendrix. Hip hop, riponga também.
Nos anos 1980, o Bar do Kareka, era um bunker de poetas, malucos, nefelibatas, astronautas sem nave. E saíamos pela cidade escrevendo poesia pelos muros, poesia sim: haicais bêbados para a namorada com gosto de vinho. Muitos deles estão lá, no antológico livro Demorô.
Éramos uma gangue tonta, matilha de malditos líricos pelas noites da cidade que presenciava os últimos e torpes suspiros da ditadura caduca. Não tínhamos medo da "justa", éramos subversivos à nossa maneira. Anarquistas que publicavam a revista ...ismo – cinema, literatura, artigos, gritos e devaneios. Foi daí que o “Kauim quase tudo” começou a engendrar a carreira poética.
O cara neoclassificou o poema do dia-a-dia, anarquizou corações, mentes e tatuagens. Desfaou, falou, for all. Andy Warhol do cerrado ressequido mexido de poesia. Essa coisa que pulsa, lateja em noite de lua cheia. É assim, Paulo. É assim Kauim. "Polikauim". I know, it's only rock and roll. But I liked.
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JORNAL CORREIO BRAZILIENSE – CADERNO C
CRÍTICA
BRASÍLIA
NA CARNE
LEONARDO CAVALCANTI
DA EQUIPE DO CORREIO
O escritor moçambicano Mia Couto disse certa vez que viaja para conhecer pessoas. E não
apenas os lugares. Digo eu: ver uma pintura e pensar no pintor de frente para a tela, uma casa e imaginar o arquiteto, ouvir uma música e imaginar o autor. Se não conhecesse Brasília, começaria a minha peregrinação na cidade pela poesia de Paulo Kauim. O texto do cabra de feições fortes e gestos e voz suaves pode até mostrar Recife, São Paulo, Lisboa ou Nova York, mas não engana ninguém: é Brasília e a periferia urbana e mais humana da capital brasileira. Seca e chuva no cerrado.
O próprio Kauim entrega o jogo fácil: “ que minha poesia tenha a economia das linhas do
buriti ". E escreve como se dirigisse um filme. A imagem das letras no papel é cinematográfica. E por isso o apuro na diagramação, na composição, tipografia e no aproveitamento dos espaços e dos brancos. Livro é para ser visto, tocado. Não bastam palavras, meu caro. O autor fez vários curtas e os apresentou de uma única vez, em Demorô. Mais um deles de presente para você: “ 3 anos sem ir ao cinema, meu pior longa ”.
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" oi paulo recebi seu livro hoje! adorei! muito bom, muito bem feito e as poesias são ótimas.
dei um pra minha amiga americana, ela não fala português mas entende algumas coisas.
ela gostou muito. abraços.obrigado.valeu!"
fernando carpaneda - artista visual - ( na foto da capa, ele segura seu próprio trabalho em
progresso )
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" O pernambucano de Timbaúba, Paulo Kauim, que hoje mora em Brasília, levou muito tempo
para publicar seu primeiro livro e abrir o belo verbo "
Marcelino Freire - Escritor
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DIARIO DE PERNAMBUCO.COM.BR
Literatura //
Dores de um poeta longe de casa
Quando Paulo Kauim era adolescente, sua Taguatinga (DF) estava mais próxima da Paris de Rimbaud e Mallarmé do que da poesia marginal rodada nos mimeógrafos do Plano Piloto. Pernambucano filho de repentista sindicalista, o garoto conhecia bem os poetas malditos franceses e mal a vanguarda brasileira. Até que um dia descobriu a poesia concreta de Haroldo e Augusto de Campos. "Fiquei sem fala. Sem escrever. O encontro com a poesia concreta foi traumático." Kauim resolveu então reler João Cabral de Melo Neto. "Para retomar o fio", diz. Demorô começou a tomar forma na época do trauma e levou duas décadas para chegar ao formato que o poeta de 46 anos acaba de lançar.
O livro é compilação de poemas escritos entre os anos 1980 e 2008. "Fui muito rigoroso na seleção porque queria que os poemas tivessem uma fala com os dias de hoje, não queria nada datado. Optei por uma polifonia", conta. "Criei uma estrutura em que a pessoa pode começar a ler em qualquer página, é uma leitura flutuante." Demorô também pode ser lido em blocos. O autor agrupou os poemas em módulos temáticos. Há uma parte dedicada aos haicais escritos nos anos 1980 e outra sobre a cultura negra, série de "africânticos" em que o autor celebra o samba e outras manifestações trazidas pelos escravos africanos. A cultura hip hop e as mazelas sociais brasileiras estão em outro bloco. A diversidade de temas é fruto do diálogo de Kauim com conjunto variado de referências.
Nascido em Timbaúba, na zona da mata pernambucana, o poeta chegou a Brasília em 1972. O pai fugia da perseguição política da ditadura que rendera uma prisão na cidade natal. A família se instalou em Taguatinga, de onde Kauim só saiu em 2002. "Na época, não tinha nada para fazer em Taguatinga, era barro para todo lado. Comecei a me interessar por leitura e ia para a biblioteca devorar os grandes poetas", lembra.
Edições caseiras - Depois do primeiro contato com os malditos franceses, o poeta voltou os olhos para o Plano Piloto e descobriu a poesia marginal brasiliense. Nicolas Behr e Franciso Kaq viraram referências. A turma do mimeógrafo fisgou o menino da satélite. "O convívio com esses poetas foi formando a minha poesia. Poesia é coisa à margem, não faz sucesso, mas acho que ajuda a fazer um mundo menos bárbaro. Faço poesia para isso." Muitos dos versos editados em Demorô não são inéditos. Saíram em livrinhos caseiros como Um centavo, Pelo pelourinho e Carruagem de polícia, mimeografados e montados artesanalmente.
O interesse pelas linguagens populares veio do pai repentista e fez Kauim mergulhar nas misturas. "Nunca acreditei na separação entre o popular e o erudito." Também nunca acreditou no isolamento. Por isso, Demorô é um trabalho coletivo. Tem participação dos artistas plásticos Fernando Carpaneda e Masanori Ohashy, responsáveis por parte do projeto visual do livro, e do escritor Geraldo Lima. "Queria dar um caráter coletivo ao livro porque a gente está vivendo época de individualismo", garante o poeta, que, na década de 1980, embarcou na experiência coletiva ao publicar revistas como Garganta e Ismo, experiências destinadas a divulgar a produção cultural brasiliense. Hoje, o coletivo fica por conta das aulas de arte-educação ministradas em escola de ensino básico da Fundação Educacional do Distrito Federal. "Acredito que por meio da arte é possível ampliar o universo dos alunos de forma crítica."
Serviço
Demorô, de Paulo Kauim
Editora: Thesaurus
Preço médio: R$ 40
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