Terça-feira, 21 de Abril de 2009

crítica: vicente de paulo siqueira

 

 

"Demorô"(Paulo Kauim)

 

“o poema: nuvem de plástico lua de urucum”


Chegou o “Demorô”, primeiro livro de Paulo Kauim. Não esquecer que o poeta inaugurou sua poesia e sua coragem ali nos idos da década de oitenta, quando se fechava o ciclo da geração mimeógrafo. Lembro-me de “Carruagem de Polícia” e “Pelo pelourinho”, que já marcavam/esboçavam seu estilo, versos que não titubeiam ante o real: Filhos de Ghandi: lá vem a nuvem de gafanhotos brancos. Ou: lá vai bashô com seu televisor mitsubishi, olhar-haicai, escrever-pensar-conceber por imagens.
O livro, mesmo sendo uma reunião peneirada do que o poeta vem produzindo ao longo desses anos-milênios, essas décadas-dias, com uma irregularidade que parece proposital, está mais para a concisão que para o palavrório (que minha poesia tenha as linhas do buriti), mais para a surpresa que para a repetição. Não é uma poesia de guetos, sejam sindicatos, academias, associações, guetos concretos ou marginais, mas uma que se quer plástica, punk, Andy Warhol e Basquiat, juntos, requinte e precariedade, labor e improviso. Uma poesia sobre o agora, rigor e delicadeza nas várias vozes que soam no livro (são sete unidades: a pulso, entre os dentes de uma bacante, africânticos, parentes do tempo, bonsai, rodagem, sem nonato o mundo é o palha e grafite): a do mimeógrafo-construtivista, que explode em jogar prosa fora pela poesia, verso (verso? esse trem ainda existe?) que aparece três vezes, três círculos que andam a dizer jogar prosa fora pela poesia, significante refazendo o significado, espelhando-o, reexplodindo a página; a do rapsodo que canta sua urbe e ruínas, na perspectiva de um amor que nos salve a todos: amor:/ parente do tempo/ eterno. E a voz da denúncia, que não se altera, não deixa a poesia perder o tom por causa da causa: aqui/ ninguém/ morre/ de/ morrer/ é/ tudo/ morte/ matada/ ou/ no transito/ ou/ na periferia/ ou/ na reforma agrária.
Ou nada: é uma voz só, que se reparte, que dança, ecoa, reverbera nas e entre as sete unidades.
Em “João Sem Plumas” (“Entre os dentes de uma bacante”), a voz de poeta do verso, pensamento e punho, a fala precisa, como a de João Cabral. Para falar do poeta pernambucano, Kauim veste-se de sua voz, deixa fundir seu estilo ao dele: a língua de joão/ não é de cão/ da arcádia/ a língua de joão/ é espessa (de/ cadela pernambucana)/ (...) Aprendo com joão/ a ser/ oceano e sertão/ não há plumas/ em cabral/ há lama e urina/ ele é o rio/ miró de caruaru/ é severino e sevilha/ joão/ rosa da zona/ da mata. Mas não é essa a preocupação que move o livro (embora seja essa a voz que dá sustentação a sua composição), porque logo o poeta é outro, é outra voz: um dia/ ser/ gabriel beckman/ furar/ a asa/ de bike/ amolar/ sua/ melopéia/ dechavar/ sua não/ sintaxe(...), voz de poeta humano/urbano, que brinca, que se alegra e parece não querer o verso langue ou os grandes temas, que simplifica pra fazer significar: ela ladainha/ liquidificador/ laranja da terra(...)/ índia de plumagem punk(...)/ ela é tão cega/(...) água do mediterrâneo/ água do godard/(...) espirra baleia/ poesia pelo atlas/ virgulina. O poeta diminui a voltagem aqui e ali, ziguezagueia seu(s) estilo(s), inventa bonsais e vem à carga, solta relâmpago e trovão, assim, palavra pouca/dizer muito(Ezra Pound): tudo/ errado/ futuro/ arcaico/ édipo/ invertido/ mama/ mamilo de/ laio.

Afeito às propostas da poesia concreta, à visualidade do poema, Kauim faz desfilar sua simpatia pelo rap, alusões ao samba e a sambistas, haicais, instantâneos sobre a cidade e à própria poesia, uma lição de alegria estética, certo vigor/furor no modo de dizer/dizer-se, exaltação explícita aos mestres, como Oswald de Andrade, João Cabral, João Guimarães Rosa, Noel.
Parafraseando Machado de Assis, o que se deve exigir de um poeta é certo sentimento íntimo, certa honestidade intelectual, apesar de ser tão difícil conceituar um negócio desse. Parece que é esse sentimento, essa honestidade que guiam sua poética (mais que os paradigmas concretos ou marginais). Em vez de nuvens na cabeça, Kauim traz o gosto pela filosofia: sou de ferrro e filosofia; daquele modo informal, porque os poetas parecem pensar de maneira pre-filosófica, pelo viés da imagem: meu/ pai/ em/ pernambucana/ prosódia/ entre/ calos/ entre canas/ repete/ a melhor religião é outro.
 
 
 
 

Vicente de Paulo Siqueira  - poeta e professor de literatura
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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publicado por paulokauim às 08:48
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